domingo, maio 29, 2011

PING



Aquela manhã de Primavera cuja friagem era memória de um Inverno agreste, estava plena de luz dando cores intensas ao prado onde o jovem e possante cão de pelo creme acetinado, corria em cavalgadas loucas com arranques bruscos, trajectórias estonteantes e paragens súbitas. O António apesar daquela bela paisagem, que espelhava uma paz quase divina, não se conseguia concentrar na pintura. Aliás nem tinha conseguido inicia-la, embora todo o material de pintura estivesse a postos. O cavalete estava montado, colocada estava a tela branca sem mácula, a caixa de tintas, pincéis e o restante material estavam ao lado do banco de campanha já armado. Tudo pronto para pintar mas aquele frenesim em que o cão se achava não permitia qualquer ignição de centelha criativa.
Ping… Vem cá. Está quieto.
Era como nada fosse dito. O Ping sentia a alegria daquela primavera e exteriorizava a sua satisfação naquela correrias exaltadas. António olhava a paisagem com olhos deslumbrados. A cor verde do prado mosqueada de manchas irregulares cinzentas dos penedos semeados ao acaso, verdes escuros, vermelhos, amarelos, brancos, de árvores, flores, canaviais ao fundo que se debruçavam sobre o ribeiro de águas cristalinas e mansas, eram as tintas que António queria no quadro que teimava em se não pintar. Depois de várias tentativas de começo o Sol foi subindo no céu azul marcando o compasso do tempo acompanhado pelo relógio do estômago que assinalava já a hora de almoço.
António por fim tomou a decisão certa, arrumou cuidadosamente o material e olhou mais uma vez em redor com um sentimento de frustração. A montanha ao fundo estava agora totalmente iluminada e os violetas acinzentados tinham sido substituídos por um verde escuro velado. Á direita, a casa de família, bem conservada com uma pintura branca recente, de onde sobressaia o verde de garrafa das janelas e da porta. Da chaminé saia um fumo branco que subia na vertical, que depois desaparecia no céu como que por encanto. Mais á direita deslocava-se pachorrentamente um comboio composto por cinco carruagens e uma maquina a vapor, de onde saia um fumo cinzento esbranquiçado que se projectava em diagonal acompanhando a marcha. De vez em quando um apito cortando o silêncio do campo. Um aviso aos incautos.
Ping… Vamos embora.
Tinha sido uma manhã perdida, mas mesmo assim aquela paz contagiante invadia a cabeça do António e actuava como um bálsamo apesar da fome que sentia.
Chegado a casa soube-lhe bem o calor da lareira onde crepitava exuberante a lenha desenhando labaredas avermelhadas como de um bruxedo se tratasse. A sala estava quente e acolhedora como sempre. Sobre a lareira um quadro evocava uma cena de caça, onde o seu pai de espingarda a tiracolo expunha o produto da caçada à cintura. Duas lebres e algumas perdizes, talvez apanhados num dia longínquo lá para os lados do sopé do cerro.
A espingarda ainda estava pendurada ao lado da lareira. O pai é que já não se encontrava em lado nenhum. Sentiu tristeza ao pensar nisso. As saudades apertavam mais que tudo.
A tia Augusta, senhora anafada e já de certa idade, de tez bronzeada pelo sol campestre chamou:
António vamos para a mesa. Hoje é coelho guisado.
António saindo daqueles pensamentos arrastou-se para a mesa com passos vagarosos. Sobre a mesa já fumegava a panela com o guisado de coelho.
O Ping sempre jovial e sem outros problemas que não fossem da sobrevivência e na sua irrequietude permanente seguiu o dono até à mesa sempre confiante em obter algum pedaço de pão ou um osso com que o dono habitualmente o presenteava.
A tia Augusta fez o prato ao sobrinho, depois o seu e sentou-se à mesa. Comeram num silêncio completo. Apesar do dia bonito e alegre lá fora, lá dentro era o silêncio e a tristeza.
As perdas de parentes próximos são sempre difíceis de suportar. Arrastam-nos num mar tenebroso, talvez calmo de resignação mas em tons de cinzento oleoso. A cor do pesar.
O coelho estava delicioso. Isso deu ao António algum alento e pensou ir até à aldeia para tomar um café na venda do Ti Armando. A venda era um misto de mercearia, drogaria, loja de ferragens, taberna e café, onde se vendia quase tudo o que fosse necessário na aldeia e arredores.
O Sol da tarde tinha aquecido ligeiramente o ar e isso era um incentivo para se meter a caminho , proporcionando um passeio agradável. O caminho de terra batida estava seco, permitindo uma caminhada confortável. De um lado e outro do caminho erguiam-se sebes de tons verde escuro alternando com os cinzentos e brancos de muros que delineavam as propriedades de onde por vezes os ramos de árvores frondosas vinham cobrir o caminho como de tectos verdes se tratassem, sempre apetecíveis em dias de calor.
Contudo e novamente aquela sensação de perda tinha-se novamente apossado de António atrasando o ritmo da sua caminhada. Os pé iam como que de arrasto para o cadafalso. Finalmente chegou à venda do Ti Armando.
Ti Armando boa tarde.
O Ti Armando com a voz arrastada pelo peso dos seus oitenta anos respondeu:
Boa tarde menino António. Atão como está? Quer um cafézinho?
Bem obrigado Ti Armando. Vou tomar um.
O António tinha o pensamento por outras paragens e não sabia o que fazer para acabar com aquele mal estar profundo.
Ti Armando. O comboio para Lisboa sai à mesma hora?
Sai sim menino.
Apetecia-lhe fugir. Acabou de tomar o café. Aquela aguada a que chamavam café caiu-lhe mal no estômago. Pagou e saiu. Andou cerca de cem metros e deparou com o edifício da estação dos caminhos de ferro. Entrou olhou em volta. Só estava o Manel da Sertã que ia a Lisboa para tratamentos. Cumprimentaram-se e António dirigiu-se à bilheteira onde comprou um bilhete para Lisboa. O comboio estava no horário. António embarcou na carruagem de 1ª classe agora com um sentimento de missão a iluminar-lhe a decisão. Sentou-se. O comboio partiu igualmente à tabela. A velha máquina a vapor resfolgou, saíram vapores brancos, rangeram ferrarias e lentamente o comboio foi ganhando velocidade. O balanço do andamento actuava como um berço e depressa esse ritmo lhe provocou sonolência. De súbito sentiu um empurrão e a cara húmida. Acidente? Olhou á volta surpreso. Estava na sala sentado no cadeirão em frente da lareira.
Está quieto Ping. Meu malandro.