quarta-feira, setembro 12, 2007

Viagem Zaire-Ambrizete-Luanda






Isto passou-se há tanto tempo que já não me recordo nem de datas nem de alguns nomes, contudo sei que foi em meados de 1967. Ficou no entanto a recordação de uma viagem atribulada onde poderíamos ter perdido a vida.
Estávamos no Rio Zaire em trabalhos de hidrografia e ocorreu a necessidade de deslocar a LFP Azimute, atribuída à hidrografia há algum tempo, para “fabricos”, que consistem na limpeza do casco, pinturas e outras reparações, nos estaleiros de Luanda. Era uma tarefa inadiável tal como o eram os trabalhos hidrográficos em curso. Deste modo havia a necessidade de deixar alguns membros da guarnição no Zaire. Mas, a viagem de 170 NM em rumo directo, demoraria bastante tempo para ser levada a cabo sem pessoal para distribuir pelo serviço de “quartos” ou seja períodos de serviço de quatro horas de duração, habitual em situações de navegação. Com guarnição reduzida havia que fazer uma paragem para descanso da tripulação. Depois de estudados os mapas decidiu-se que poderíamos fundear em Ambrizete onde chegaríamos antes do por do Sol, permitindo uma aproximação ao fundeadouro com visibilidade e segurança. O ponto de largada seria já no Atlântico fora da barra do rio Zaire de onde se metia ao rumo verdadeiro 152º directos ao fundeadouro do Ambrizete. As 75 NM a percorrer à velocidade esperada daria para chegar de dia a este primeiro destino.

Desatracamos e iniciamos a viagem, descemos o rio Zaire até à foz, que não é muito distante, e procuramos posicionarmo-nos no ponto que designamos por Zaire. A navegação foi decorrendo sem problema, com céu limpo mas com um aumento progressivo da ondulação, designada por “calema”.
No início da tarde, depois de largas horas de navegação, o marinheiro fogueiro veio avisar-me de que estávamos com um problema no motor de estibordo. Indaguei qual o problema e se poderia ser resolvido no local. Não podia, pois o motor fazia um barulho estranho e não era possível identificar a causa. Decidiu-se diminuir as rotações do motor e prosseguir caminho. Essa redução de rotações iria ter um impacto negativo na velocidade e comecei a temer não chegar de dia ao fundeadouro de Ambrizete. Entretanto a calema aumentava de intensidade, o que contribuía para diminuição da marcha, e o balanço começava a ser incomodativo. O fim do dia aproximou-se sem avistarmos o fundeadouro. Estava uma noite escura sem Lua que complicava a situação já de si complexa. Por fim já noite cerrada vimos a luz do farol do Ambrizete, mas era impossível avistar a costa. Fomo-nos aproximando com cautela e começamos a ouvir o barulho de rebentação muito forte, sem contudo avistarmos terra. Aos poucos habituando a vista e apagando qualquer luz a bordo que pudesse prejudicar a visibilidade começamos a ver a bombordo, ao longe, algumas luzes da iluminação pública que por essa altura não deveriam ter lâmpadas de mais de 25 Watts. Com essas referências tentamos uma aproximação que permitisse visibilidade para uma escolha do local onde teríamos de fundear mas sem as habituais referências constantes na carta que só seriam visíveis de dia. Em marcha lenta fomo-nos aproximando para tentar evitar o embate nas rochas submersas mencionadas na carta, que com aquela escuridão era impossível determinar a sua localização. De súbito avistamos uma traineira de pesca fundeada e baloiçar desvairadamente. Se a traineira estava aí fundeada poderia ser aí o local mais adequado para fundear tanto mais que o calado da LFP não era superior à da traineira. Continuamos de forma a ficarmos numa posição paralela à traineira a uma distância de segurança adequada. Nesta faina, onde tínhamos de embraiar e desembraiar os motores para fazer as manobras aconteceu aquilo que nunca tínhamos esperado. O motor de estibordo produziu um estalo e embalou para uma rotação muito elevada como se o hélice tivesse batido na rocha e se tivesse solto do veio. A apreensão aumentou de uma forma brutal. Como poderíamos fazer face aquele mar bravo com um único motor?
Afastamo-nos um pouco do local para Norte e depois de termos posicionado a LFP lançamos o ferro. Por sorte o ferro era uma ancora tipo almirantado que “unhava” bem e estava presa a uma forte corrente de ferro. Fundeados verificamos que o balanço era muito forte. Decidi mandar um marinheiro para a proa vigiar a amarra, com instruções de avisar de imediato se algo de anormal sucedesse e o único motor seria posto imediatamente a trabalhar e sairíamos rumo Oeste. O mestre ficou igualmente de vigia ao estado do mar e com instruções de me avisar de imediato, caso o tempo piorasse. Desci para a câmara para descansar um pouco. Tarefa quase impossível devido ao balanço muito forte. Tinha acabado de me sentar na cadeira da secretária quando o armário de aço das publicações confidenciais, rebentando com os parafusos de suporte à antepara, vindo na direcção da minha cabeça. Só tive tempo de, numa atitude de jogador de basketball, alterar a sua trajectória. Foi por pouco. Agora só esperava que os primeiros alvores surgissem e fosse proporcionada visibilidade para sair daquele inferno. Horas de angústia e finalmente um azul-escuro começou a aparecer no céu substituindo o negro. Desloquei-me à ponte alta e comecei a tentar observar tudo em redor. A água era de uma cor branca-amarelada devido à areia que era levantada com a rebentação, o que significava que estávamos em fundos baixos, para Leste desenhava-se uma tira branca de areia onde ondas alterosas rebentavam com enorme ruído, para Sul uma encosta escarpada, para Norte uma linha de rebentação que se desenvolvia para Sul passando a Oeste do local onde nos encontrávamos fundeados. Uma situação muito crítica pois tínhamos que passar a linha de rebentação a Oeste com um só motor e sem deixar a LFP se atravessar à vaga porque por certo se viraria e iríamos ao fundo. Combinei com o mestre a estratégia a seguir que tinha que passar por uma coordenação de acções simultâneas para vencer a linha de rebentação a Oeste, visto ser a nossa única saída. Eu estaria ao comando do único motor operacional para meter a marcha a vante ou a ré consoante fosse necessário para ajudar a manobra do leme e o mestre ao leme obedecendo prontamente às duas únicas vozes de “todo o leme a bombordo” ou “todo o leme a estibordo” para aproar a LFP à vaga e a não a deixar atravessar, porque se isso acontecesse com aquela ondulação era naufrágio certo.
Lançou-se o motor de bombordo e içou-se o ferro.
Aproamos à vaga e lá manobramos com alguma dificuldade até que deixamos a linha de rebentação para ré. Ainda navegamos para Oeste o suficiente para nos distanciarmos da costa e termos uma margem de segurança. Depois fizemos rumo à entrada da Baia de Luanda como planeado. Numa marcha arrastada finalmente atracamos em Luanda à duas da tarde. Estávamos extenuados. Mesmo assim equipei-me com os apetrechos de mergulho e fui observar os estragos. Não vi qualquer sinal de ter batido na rocha nem no que quer que fosse. Tratava-se de uma avaria mecânica no próprio motor. Mais tarde as oficinas informaram-me que a embraiagem do motor de estibordo se encontrava partida.
Foi reparado o motor e substituído o “anete” danificado, que liga a âncora à corrente, que por pouco não se partiu devido ao esforço sofrido com o mau tempo no Ambrizete.